- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Revista de Haicai - Editores: Chris Herrmann e Jiddu Saldanha
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Entre a tradição do Haiga e nossa contemporaneidade digital
Tchello d´Barros

Não dá pra dizer exatamente quando a arte entrou em minha vida, ou se era um brinde que já veio no pacote. Lembro-me que aos cinco anos já desenhava no assoalho da casa e aos seis, na escola, declamei uma quadra, que meu avô materno me ensinou. A fotografia veio mais tarde, no início da década de 90, quando fazia teatro e comecei a publicar os primeiros versos. O que lembro de fato é que quando o haicai entrou em minha produção literária, nunca mais saiu, digamos assim. Creio que os poetas que entram no universo do haicai nunca mais são os mesmos, pois não se trata de aprender mais uma técnica ou métrica e sim de desenvolver outra percepção para nossas possíveis leituras do mundo, do homem, da realidade.

A fotografia em meu caso veio posteriormente a minha formação em artes visuais, tanto é que sempre imagino que não fotografo como um fotógrafo convencional, mas como um pintor, pois valho-me dos recursos clássicos da pintura, tais como a perspectiva, a luz-e-sombra, o equilíbrio cromático, a valorização da anatomia e principalmente os recursos de composição, usados pelos velhos mestres do Renascimento. Até aí, nada de novo sob o Sol, mas quando se é alguém que se expressa tanto com a palavra quanto com a imagem, é inevitável e até produtivo que ambos os caminhos se cruzem, se fundam se confundam... Nunca é demais lembrar que o próprio poeta Matsuo Bashô, que popularizou o haicai no Japão setecentista, ao final da vida dedicou grande parte de seu tempo ao estudo da pintura também.

Mas eis que um dia conheci o haicai e adentrando em seu universo de kigôs, tankas, rengas, haibuns e haigas, foi até natural que parte de minha produção adquirisse elementos do haicai, como a simplicidade, a síntese e condição de comunicar o apenas o necessário com os recursos disponíveis. Talvez o rigor seja a maior lição apreendida. Um rigor que em meu caso, migrou para o desenho, as gravuras e também para minha produção fotográfica. Isso ficou mais evidente ainda quando em 2.000 d.C. lancei Olho Zen, meu livro de haicais.

violetas azuis
esta tarde não passou
em brancas nuvens

Haicai de Tchello d’Barros, de 1.999 publicado em seu livro de haicais “Olho Zen” (Ed. Multi-prisma – Blumenau-SC – 2000 d. C.)

neve na cidade
miava o gato branco
e ninguém o via

Haicai de Tchello d’Barros, de 2.009 publicado no blog Haigatos, editado por Jiddu Saldanha

Aqui no ocidente, esse poemeto de origem nipônica medieval sempre suscitará acaloradas discussões, por questões, principalmente por questões de métrica e estilo. Uma de minhas controvérsias preferidas é exatamente a relação entre haicai e fotografia, já que pratico ambos, pois há sempre quem defina o haicai como a eternização de um momento, tal qual uma fotografia. Atualmente posso afirmar que há muito de haicai em minha obra fotográfica e vice-versa.

Não bastasse tudo isso, a gente vai atravessando o rio da vida e encontrando nossos pares, outros apaixonados por essas questões, como os artistas multimídia Chris Herrmann (poesia, letras de música, piano, arte digital) e Jiddu Saldanha (poesia, pintura, mímica, fotografia, vídeo). São parceiros queridos com os quais temos realizado algumas produções, inclusive os vídeo-haigas editados por Jiddu, com a sublime música composta e executada por Chris, cuja virtuose ao piano integra plenamente os haicais e fotos desse projeto. Na pós-modenidade em que vivemos, as fronteiras das linguagens artísticas estão mais livres e nesse sentido creio que esses vídeo-haigas são experimentações intersemióticas ou haigas verbi-voco-visuais, pois o trabalho é percebido mediante o sentido do texto, a imagem da fotografia e o som da música.



E assim seguimos adiante, como nas peregrinações de Bashô, deixando como rastro as possíveis emoções estéticas derivadas de nossa produção escrita, visual, musical e até mesmo digital. Evoé!

Tchello d’Barros
www.tchello.art.br
Junho de 2010 – Belém/PA.

.


ANDRA VALLADARES
Andra Valladares nasceu em 24/09/1971, em Governador Valadares/MG, porém, considera-se capixaba por residir no Estado do Espírito Santo desde que tinha dois anos de idade. Formou-se em Direito no ano de 1995 e exerce a profissão de advogada desde então. Apreciadora de todas as formas de expressão artística, é também cantora, compositora e fotógrafa amadora. Neste ano de 2010 será nomeada membro da Academia de Letras Humberto de Campos e lançará seu primeiro CD profissional. Participou de mais de 20 antologias poéticas pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores e também teve um haicai e um poema de sua autoria publicados na revista bilingue Brasil Nikkei Bungaku nº 32 (junho/2009), organizada pela Associação Cultura l e Literária Nikkei Bungaku do Brasil. Na internet participa dos grupos literários Haikai-L e Movimento Internacional Poetrix.



[clique nas imagens para vê-las em tamanho natural]


[para assistir este vídeo no nosso canal no YouTube clique aqui]



Cristiane Grando pergunta e o Haicaísta Celso Pestana responde


Cristiane Grando é autora de Fluxus, Caminantes, Titã e Gardens (poesia em português, francês, espanhol, catalão e inglês). Laureada UNESCO-Aschberg de Literatura 2002. Doutora em Literatura (USP, São Paulo), com pós-doutorado em Tradução (UNICAMP, Campinas), sobre as obras e manuscritos de Hilda Hilst. Professora convidada de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira na Universidad Autónoma de Santo Domingo (UASD) desde 2007. Diretora-fundadora do espaço cultural Jardim das Artes (Cerquilho-SP, Brasil, 2004) e do Centro Cultural Brasil-República Dominicana (São Domingos, 2009). http://www.letras.s5.com/archivogrando.htm


CRISTIANE GRANDO: É possível relacionar, em alguns casos, um haicai com uma natureza morta? Gostaria que desse alguns exemplos de haicais que podem remeter a quadros (natureza morta, paisagem, etc).

CELSO PESTANA: Natureza-morta é um gênero de pintura em que se representam frutas, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre outros objetos. O foco de uma natureza-morta são esses objetos. Outros tipos de pintura podem ter objetos entre seus elementos, mas com um foco diferente.

O foco do haicai não são os objetos, e, portanto, não se pode falar em natureza morta nesse poemeto; mas, como os objetos fazem parte da nossa vida, aparecem aqui e ali na obra dos mestres. Por exemplo:

Mingau branco

Numa tigela imaculada –
A luz do sol do Ano-Novo.
(Josô)


No orvalho da manhã,
Sujo e fresco,
O melão enlameado.
(Bashô)


Na sopa fria,
Refletidos,
Os bambus do quintal.
(Raizan)


Primeiras neves –
Meu maior tesouro,
Este velho penico
(Issa)


Acho muito importante ter em mente que, quando se fala em foco no haicai, é preciso distinguir entre o objetivo, aquele que é descrito, e o subjetivo, aquele que é despertado pela descrição objetiva. Um bom haicai não prescinde deste último. Penicos, paisagens, marinhas, etc., em minha opinião, servem a esse propósito.

Mas há pelo menos uma tentativa entre nós de pintar uma natureza morta em três versos:

Natureza morta.
Frutos, caça, vinhos?
Não.
Maletas de couro.

Oldegar Franco Vieira (http://sopadepoesia.blogspot.com/2009/06/tres-haicais-de-oldegar-franco-vieira.html)

Não sei se é legal pintar um quadro tão pequeno e lhe colar uma etiqueta como a do primeiro verso desse poema.

CRISTIANE GRANDO: Quanto é permitido ao poeta fugir da concisão ao criar um haicai? Quais os casos de haicais mais extensos que você conhece?

CELSO PESTANA: A um bom poeta tudo é permitido. Se ele não quiser ser conciso ao criar um haicai, nada o impede. A questão é: por que o faria? Por que criar um haicai se não se pretende ser conciso?

Bashô falou da rã assim:

O velho tanque –
Uma rã mergulha,
Barulho de água.

Pessoa, alma de amplos mares, preferia, talvez, às finas fatias de um sashimi uma dobrada à moda do Porto – e que não a servissem fria! E escreveu assim sobre o anfíbio:

Todas as cousas que há neste mundo
Têm uma história,

Excepto estas rãs que coaxam no fundo

Da minha memória.

Qualquer lugar neste mundo tem

Um onde estar,

Salvo este charco de onde me vem

Esse coaxar.


Ergue-se em mim uma lua falsa

Sobre juncais,

E o charco emerge, que o luar realça

Menos e mais.


Onde, em que vida, de que maneira

Fui o que lembro

Por este coaxar das rãs na esteira

Do que deslembro?


Nada.
Um silêncio entre juncos dorme.

Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.


Fernando Pessoa, 13-8-1933.

Navegar é preciso, mas escrever haicais é uma escolha – e não é uma escolha fácil.

Quanto à segunda parte da pergunta, não conheço nenhum bom haicai que seja mais extenso que o necessário.

CRISTIANE GRANDO: O haicai é formado por apenas uma estrofe ou há casos de haicais que são formados por duas estrofes?

CELSO PESTANA: Aquilo que no Brasil chamamos de haicai, e que é conhecido no resto do mundo por haiku, é formado por apenas uma estrofe. Há outra forma poética japonesa chamada tanka, constituída por um terceto e um dístico, e há alguns haicaistas brasileiros que a exercitam. No entanto, já vi um de meus mestres dizer que a maioria desses tankas não têm relação com a arte japonesa e são apenas uma maneira de burlar a restrição dos três versos para dar vazão à nossa verborragia ocidental.

Sobre a evolução (tanka, haikai-no-renga, haiku) e as características do haicai, recomendo a introdução do Prof. Paulo Franchetti no seu livro Haikai (com Elza Taeko Doi e Luiz Dantas), de onde, aliás, tirei as traduções acima.